A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL, O MADONNARO E OS HOMENS-MEMÓRIA:
DIALOGANDO COM A HISTÓRIA DE PIRANEMA
Marcelo Amaral Coelho
Este
texto relata uma experiência de sala de aula como parte do conteúdo
programático ministrado à turma de 7º ano, do Instituto Educacional Zion (IE Zion), localizado no bairro Piranema, em
Itaguaí (RJ). O conteúdo em questão deveria versar sobre a Educação
Patrimonial. Foi quando se pensou a própria realidade dos alunos como tema.
Diante disso, eis que irrompeu a questão: Teria aqueles alunos um conhecimento
cultural da realidade na qual estão inseridos? Daí que, se valendo da história
local, foi decidido de estudar o prédio da escola – que antes fora uma igreja
evangélica e atuara como referência na localidade. Por extensão, se estudou um
pouco da história do bairro de Piranema. Dado a dimensão memorial do conteúdo
abordado foi pensada a presença de um antigo morador como forma de
‘presentificação viva’ do passado. O Madonnaro marcara presença como conteúdo
de arte e ferramenta de apropriação cultural.
Assim
sendo, como fazer para funcionar a engrenagem que poderia facilitar a
apropriação do patrimônio cultural – no caso a história da própria escola em
consonância com a localidade como um bem cultural comum? O IE Zion tem por
metodologia a Abordagem Educacional por Princípios (AEP). Enquanto uma escola
de pedagogia confessional, o IE Zion recorre à AEP como um método de propulsão
do potencial individual que auxilia na formação de um caráter baseado nos
princípios cristãos e ainda estimula a cooperação e a interação (SOUZA, 2015).
Uma rápida panorâmica sobre essa abordagem de ensino mostra que nos anos 1930,
nos EUA, Verna Hall iniciou suas pesquisas sobre os princípios cristãos
aplicados à política. As conclusões dessas pesquisas na formação de caráter e
estabelecimento de governo foram fundamentais para que, em 1965, fosse fundada
a Fundação para Educação Cristã Americana (FACE), por Hall e Rosalie Slater. No
Brasil, a então Educação por Princípios chegou, em 1989, na cidade de Belo
Horizonte, por iniciativa de Cida Mattar (ALVES, 2012).
A
AEP existe embasada por sete princípios: caráter (integridade), mordomia
(gestão), autogoverno (equilíbrio), semeadura (responsabilidade), soberania
(humildade perante Deus), individualidade (identidade) e união (interação
social). Ainda esse método é constituído de ferramentas que contribuem à
construção do conhecimento e formação do indivíduo. São elas: Estudo de
Palavras, Fichário, Produção de Textos (composição, ensaio, etc), Belas Artes,
Constituição de Classe, Linha do Tempo, Leitura de Clássicos, Estudo de
Biografias, Oportunidade de Serviço, Memorial, Celebração da Aprendizagem e
Avaliação. Destas, se fez uso de Estudo de Palavras, Fichário, Belas Artes,
Celebração da Aprendizagem e Avaliação.
O
método da AEP é composto de quatro passos. Inicialmente, o aluno é desafiado a
pesquisar o significado das palavras. Nesse momento se tem contato com a classe
gramatical, significado e interpretação da palavra. Em seguida, o aluno deve
raciocinar a partir das descobertas feitas na pesquisa das palavras. Trata-se
de uma etapa de aprofundamento conceitual. Depois de aprofundar os conceitos é
hora de estabelecer relações. Relacionando o conhecimento adquirido com outras
disciplinas, princípios e com o cotidiano se estabelece a interdisciplinaridade
e a transversalidade. Por fim, como conclusão, o aluno deve registrar por meio de
um texto, desenho ou outro recurso aquilo que pode aprender.
Interessante
que a metodologia da AEP instaura conexões com a Educação Patrimonial. Esta foi
também concebida em quatro etapas: observar, explorar, registrar e apropriar
(HORTA et al., 1999). A observação
acontece quando se pesquisa um tema a ser estudado. A exploração desse tema vai
exigir o raciocínio com vistas a conhecê-lo melhor e vislumbrar suas
possibilidades. Tais possibilidades devem ser registradas a fim criar relações
que possam expandir o conhecimento para além do tema. A última etapa é quando o
aluno deve produzir algo (música, texto, pintura, etc) como forma de deixar
registrado a apropriação do conhecimento.
Inicialmente
foi compartilhado um infográfico com os alunos contendo os conceitos que
norteariam o desenvolvimento do conteúdo/tema (Fig. 01). Aqui foi lançado mão
da ferramenta da pesquisa de palavras – ainda que não fora feita em uma
incursão direta ao dicionário. No infográfico, dentre outros, a definição de
Educação Patrimonial foi apresentada como um processo permanente de educação
centrado no patrimônio cultural como fonte primária (HORTA et al., 1999). Definição esta que, em 2014, o IPHAN ‘consagraria’
como processo de educação formal (escolas) e não-formal (museus, igrejas, etc).
O Madonnaro aparecia como “(...) a antiga arte de espalhar com os dedos e o palmo da
mão o giz sobre o chão” (NAALIN, 2000, p. 34 – Trad. livre).
Posteriormente, com o andamento das aulas, surgiu a oportunidade de trabalhar o
conceito de Homem-memória como especialistas e guardiões da memória desde os
tempos das sociedades orais (LE GOFF, 1990).
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Figura 1: Infomgráfico. |
Em
raciocinando sobre o que foi descoberto quando da pesquisa de palavras,
conforme previsto na AEP, se percebeu que aqueles conceitos poderiam contribuir
em uma possível reflexão sobre a ressonância cultural do prédio que sedia a escola.
Ao que a Educação Patrimonial, centrada no patrimônio cultural, poderia
permitir ver o prédio como tal ainda que não se tratasse de um reconhecimento
‘oficial’. O prédio fazia parte de um meio ambiente histórico (HORTA et al., 1999) composto pelo entorno – à
época caracteristicamente rural e hoje habitado por empresas de logística e
exploração de areia. Aquelas terras um dia pertenceram aos Jesuítas como parte
da Fazenda de Santa Cruz, organizada em 1656, ocupando uma área de cerca de
1.800 Km². Existem rumores que na região tenha existido um quilombo.
Outras suspeitas dão conta que nos tempos da mineração havia, em Piranema, um
registro para controlar o fluxo de carregamento daquelas riquezas (SOUZA, 2005).
Ainda
foi possível descobrir que a palavra “Piranema” era de origem tupi e
significava “terra de peixe podre”. A região era inundada com frequência pelas
marés. Alguns peixes, não conseguindo retornar ao mar, acabavam morrendo e
causando o forte odor que predominava na região (SOUZA, 2005). Hoje, o peixe
também é conhecido como “olho de cão” ou “vermelho”. Uma iguaria nos
restaurantes, o carnívoro piranema mede em torno de 35 cm e vive em
profundidades marinhas que vão de 10m a mais de 200m (CPEABRASIL, 2014).
A
partir dessas informações de caráter histórico se pensou convidar um morador
antigo para que ‘presentificasse’ aos alunos algumas histórias de Piranema. Foi
quando houve o convite ao Sr. Wilson, com 88 anos de idade, em Piranema desde
os 15 anos, pai de uma das diretoras da escola (Fig. 02). Ao que ele aceitou
prontamente. O Sr. Wilson trabalhou na construção do prédio onde hoje funciona
a escola quando este fora erguido para ser uma igreja, por volta dos anos 1960.
Contou que, quando adquirido para sediar a igreja evangélica, o imenso terreno
era repleto de ‘pés’ de laranjas. Com as constantes invasões aquela comunidade
eclesiástica decidiu por lotear boa parte das terras e disponibilizar para
venda – o que acabou contribuindo para a dinâmica imobiliária e demográfica do
bairro. Os alunos ficaram ainda encantados quando souberam dos lampiões que
‘alumiavam’ os cultos noturnos e a caminhada até à igreja. Vários deles não
conheciam o que era um lampião
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Fig. 03 – Os Madonnaros pelo chão da escola. |
O
espaço externo, ainda que extensão da sala de aula, sugere um novo ambiente. O
que antes era histórico, pedagógico também se faz cultural e artístico. A
produção-exposição das obras desencadeia relações e interpretações. Os
alunos-artistas conversam e trocam ideias sobre os trabalhos; o público
(funcionários, colegas, professores, etc) dialoga com o aluno-artista; o
público comenta entre si sobre o que está acontecendo. O clima de interação e
compartilhamento é total. Tanto que, uma das funcionárias da escola, vendo a
agitação dos alunos-artistas, reativa a memória – até certo momento afetiva,
percebida na entonação de sua voz – e comenta de quando tinha de andar ‘pela
noite’ adentro tendo em mãos apenas o lampião de querosene.
Sem
dúvida, como antes manifestado no bate-papo com o Sr. Wilson e provocando o start mnemônico da funcionária
mencionada acima, o lampião foi a imagem que predominou nos trabalhos. Um
deles, se valendo de uma composição poética, trazia no lugar da chama um
‘coração’ (Fig. 04). Ao total, cinco alunos (as) pintaram lampiões. Outros
cinco alunos (as) fizeram peixes em alusão ao significado da palavra ‘Piranema’
(Fig. 05). Uma aluna criou uma composição onde aparecia um pescador lembrando
as pescarias do Sr. Wilson pelos rios da região que não mais servem à atividade
por conta da poluição (Fig. 06). O prédio da igreja tendo ao lado um ‘pé’ de
laranja figurou na pintura de um aluno que relembrou um pouco da história do
local (Fig. 07).
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Fig. 04 – Lampião com chama de
‘coração’.
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Fig. 05 – Peixe Piranema
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Fig. 06 – O pescador
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Fig. 07 – A igreja e o laranjal |
Como
possíveis considerações finais a experiência trouxe algumas reflexões. Os
homens-memória estão relacionados ao patrimônio cultural por serem detentores
de significados culturais que outras formas de ‘transmissão’ como a escrita, a
Imprensa, a mídia eletrônica e a internet não foram nem são capazes de fazê-lo.
A existência dos homens-memória se justifica pela interação social: são
adiantados em idade, mas estão vivos; se estão vivos necessitam, podem e têm
direito a se relacionar com o outro. Nessa relação se reconhecem e são
reconhecidos; constituem a história e constroem a história. Sem os
relacionamentos interpessoais não há gestão, compartilhamento e apropriação do
patrimônio cultural – seja ele material ou imaterial. A nova geração precisa
reconhecer as gerações anteriores para que se possa pensar como Sócrates e
suavizar a existência e o convívio. Daí que a aprendizagem de competências e o
reconhecimento de princípios como o respeito, o diálogo, o caráter e tantos
outros em consonância com as técnicas de arte podem fazer a diferença na
‘modalidade’ de Educação Patrimonial. Mas que isso: fazer diferença na vida!
REFERÊNCIAS:
Sobre
o autor: Graduação em Licenciatura em Belas Artes (UFRRJ); Especialista em
Educação Museal (ISERJ/IBRAM/FIOCRUZ/FAETEC); Mestrando no Programa Patrimônio,
Cultura e Sociedade (PPGPACS/UFRRJ), sob orientação do Prof. Dr. Fabio Ricardo
Reis de Macedo.
A
BÍBLIA VIDA NOVA. Editor
resp. Russell P. Shedd; trad. em português João Ferreira de Almeida. Ed. rev. e
atual. no Brasil. S. Paulo: Vida Nova; Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil,
1995.
ALVES,
Monica Pinz. Educação por princípios bíblicos: um método cristão de ensinar? Congresso Internacional da Faculdades EST, 1., 2012, São Leopoldo. Anais
do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v.
1, 2012, p.157-179.
BRASIL. Casa Civil. Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 11 de fevereiro de 2017.
COELHO,
Marcelo A. Madonnaro:
gênero, técnica e linguagem pictórica. 2015. Monografia (Graduação em
Licenciatura em Belas Artes) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica (RJ).
CPEABRASIL.
Peixe vermelho ou Olho de Cão. 19 de
abril de 2014. Disponível em: <http://www.cpeabrasil.com.br/ospeixes/index.php?controller=post&action=view&id_post=22>. Acesso em: 18 de outubro de 2017.
FARIA, Ernesto et al. (Org.).Dicionário
Escolar Latino-Português. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura – Departamento Nacional de Educação, 1962.
HORTA, Maria de Lourdes P. et. al.. Guia básico de educação patrimonial.
Petrópolis: Museu Imperial-DEPROM; Brasília: IPHAN/MinC, 1999. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/temp/guia_educacao_patrimonial.pdf.pdf>. Acesso
em: 20 de junho de 2017.
IPHAN. Educação Patrimonial – Histórico, conceitos e processos. Ministério de Estado
Muitíssimo interessante sua abordagem.
ResponderExcluirGostaria de saber em quantas aulas conseguiu concluir toda a proposta (contando as aulas expositivas). Além disso como foi a recepção do núcleo pedagógico sobre a proposta? Ocorreu algum diálogo?
Wendell P. Machado Cordovil
Wendell... Obrigado pelo comentário! O "projeto" em si foi pensado para acontecer durante o quarto bimestre. Excetuando a Avaliação Bimestral (escrita) e o COC (programado para o dia de uma das aulas coma turma) conseguimos desenvolver o "projeto" em quatro aula mais a atividade complementar (desenho em casa).
ExcluirA recepção foi muito boa. A direção da escola acredita na proposta e conhece a metodologia de trabalho. O Madonnaro é meu objeto enquanto pesquisador e técnica enquanto artista. Desenvolvo o trabalho em outras escolas... O projeto foi apresentado e, como dito no texto, obteve colaboração direta de uma das diretoras que intermediou a presença de seu pai, o homem-memória que enriqueceu nossa experiência. Os professores super apoiam. Até mesmo a equipe de limpeza, que em outras escolas torcem o nariz porque entenderem que o que se faz é "sujeira", se encanta com a produção dos alunos - e até interagem, conforme relatado no texto. O fato das obras serem feitas próximas da cerca facilita a exposição aos pais e responsáveis possibilitando que também "participem" do projeto. Não sei se te respondi... (Marcelo Amaral Coelho)
Respondeu sim. Obrigado.
ExcluirBoa tarde, Marcelo. Muito interessante seu texto e pontual para entendermos a inserção histórica da Escola dentro da história de uma comunidade. Realmente a Educação Patrimonial pode possibilitar novas leituras, olhares e conhecimento sobre nossos bairros, cidades e Estado.
ResponderExcluirSim, José Humberto! A Educação Patrimonial abre um leque de opções justamente por seu caráter transversal e interdisciplinar. Abordar o patrimônio cultural como fonte primária, dentro do que foi possível observar em minha prática de sala de aula, acaba por criar um espécie de vínculo do aluno com o conteúdo. (Marcelo Amaral Coelho)
ExcluirAproveito para corrigir uma falha... A referência correta do IPHAN (última na relação das referências) é: IPHAN. Educação Patrimonial – Histórico, conceitos e processos. Ministério de Estado da Cultura: Brasília, 2014. Por desatenção acabei enviando incompleta! (Marcelo Amaral Coelho)
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