DEUSES E HOMENS: A LINHA TÊNUE ENTRE O TEMPO MÍTICO E O
TEMPO HISTÓRICO
Lidiana
Emidio Justo da Costa
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Chegada do Capitão Cook
ao Hawai. Inicialmente foi recebido com honrarias e euforia
por parte dos nativos. Disponível em: http://cookmultimidia.blogspot.com/2014/11/resumo-da-aula-23-sahlins-leitura-2-0411.html. Acesso em:
3/dez./2018.
Instigante, reflexivo e enigmático, é
esta a sensação do leitor ao concluir o texto Capitão James Cook ou o Deus agonizante, quarto capítulo da obra Ilhas da História, do antropólogo
Marshall Sahlins, publicada em 1985. Mas antes de discorrer sobre o assunto,
faz-se necessário situar o autor e sua trajetória. Marshall Sahlins nasceu em
Chicago (EUA), no ano de 1930. Formou-se bacharel pela Universidade de
Michigan, tendo obtido o título de PhD na Universidade de Colômbia em 1954.
Durante sua trajetória acadêmica na
Universidade de Colômbia, aproximou-se da escola neoevolucionista, corrente
criada por Julian Steward e Leslie White, a qual
se opunha ao culturalismo de Frans Boas e seus discípulos. À época, tomando
como objeto de estudo as sociedades tribais das ilhas do Pacífico, Sahlins
observou que em todo o mundo “embora não na mesma época, as sociedades passaram
por estágios semelhantes de desenvolvimento político em consequência do
progresso tecnológico e do acúmulo de recursos nas mãos de poucos” (KUPER,
2002, p.211), esta perspectiva analítica rompeu com o viés da escola marxista
no que tange às reflexões desta escola sobre as sociedades primitivas.
Posteriormente,
durante sua estadia em Paris no final da década de 1960, o autor afastou-se do
neoevolucionismo materialista e, influenciado pela corrente estruturalista que
tinha Levi Strauss como um dos maiores expoentes, promoveu uma série de
críticas ao evolucionismo fundamentando-se no culturalismo. Ainda nos anos
1960, Sahlins participou dos protestos contra a Guerra do Vietnã e do movimento
de maio de 1968. Como se pode perceber, uma vida intensa que presenciou no
campo político, econômico, social e cultural inúmeras mudanças e rupturas, mas
ao mesmo tempo continuidades/permanências, talvez a sua obra seja um reflexo
disso tudo.
Foi durante sua guinada estruturalista
que Marshall Sahlins escreveu Ilhas da
História. A mesma foi dividida pelo autor em 5 capítulos, dentre os quais
será destacado neste texto aquele intitulado-
Capitão
James Cook ou o Deus agonizante, uma
narrativa na qual é possível perceber o diálogo entre estrutura e história, bem
como refletir sobre a relação entre os homens e seus deuses numa constante
interação entre o tempo mítico e o tempo histórico, que, por vezes,
entrecruzam-se na explanação apresentada pelo autor.
Cabe destacar que a obra de Sahlins é referenciada por François Hartog (2015)
no livro Regimes de historicidade: presentismo e experiências do
tempo. Para este historiador, as ordens do
tempo, que se apresentam de formas diversas em diferentes lugares e épocas,
imprimem um movimento de comando, pois são
“[...]
tão imperiosas, em todo o caso, que nos submetemos a elas sem nem mesmo
perceber: sem querer ou até não querendo, sem saber ou sabendo. [...] As
relações que uma sociedade estabelece com o tempo parecem ser, de fato, pouco
discutíveis ou nada negociáveis” (HARTOG, 2015, p. 17).
O capitão inglês,
James Cook, fora recebido como o deus Lono pelos habitantes das ilhas
polinésias, um deus local vinculado à reprodução humana e ao incremento
natural. E, assim como Lono, seu destino seria morrer para poder ressurgir.
Dessa forma, Cook, após um acidente meteorológico desastroso que fez sua
embarcação se afastar da ilha, teve que lidar com o constrangimento de ter sido
mal recebido pelas lideranças tribais. Esse fato foi analisado por Marshall
Sahlins como “a metáfora histórica dentro de uma realidade mítica” (1990,
p.141), porquanto, sua vida estava por um fio.
Nas teias dos
acontecimentos, o assassinato do Capitão Cook deu-se em meio à compreensão
cosmológica da morte e ressurgimento do deus Lono. Sendo assim, Cook, dentro
desse universo mitológico, foi de objeto de veneração a objeto de hostilidade.
O ato sacrificial do capitão fez parte de um rito onde estavam presentes o
chefe e uma multidão exultante. A mudança comportamental começou a partir do
momento em que o rei passou a enxergá-lo como um inimigo. Tem-se, portanto uma
iminente “crise estrutural quando todas as relações sociais começam a mudar
seus signos” (SAHLINS, 1990, p.143).
Partindo do
entendimento de que todos os acontecimentos são signos, “a história pode ser
organizada por estruturas de significados”, sendo a partir desse entendimento
que Marshall Sahlins desenvolveu o conceito de “Mitopráxis”. Tal concepção
explicaria o fato de que, para os havaianos, o capitão Cook era o deus Lono.
A mitopráxis seria uma
espécie de chave mestra para se compreender a recriação dos mitos em
circunstâncias modernas, aplicando a teoria à prática. O autor destacou a
transformação das estruturas sociais e hierárquicas nas sociedades polinésias,
observadas, por exemplo, no intercâmbio entre as mulheres havaianas e os
tripulantes ingleses. Essas mulheres, ao procurarem manter relações sexuais com
os ingleses, vislumbravam uma ascensão dentro daquela estrutura social,
passando da condição de “subalternas” à mãe de filhos de deuses.
Tal tipo de
comportamento reforçou a argumentação de Sahlins de que os signos têm o poder
de transformar a realidade local, ou seja, de atuar na transformação das relações
entre os chefes locais e o povo, algo praticamente impossível nos modos
tradicionais de se relacionar. A nova configuração societária não prezava pelos
elos de parentescos, o que levou Sahlins a inferir que toda transformação
estrutural implicava numa reprodução cultural.
Dentre as inúmeras
possibilidades que a história do capitão Cook e a população havaiana oferecem, não
se podem negligenciar as concepções de tempo. Sahlins explica a sucessão dos
eventos procurando fazer dialogar num movimento de sincronia e diacronia, o
tempo mítico e o tempo histórico. Assim, nessa busca às origens, a celebração
do ano novo havaino – “Makaki”, teria um significado de “eterno retorno”.
Outra peculiaridade,
no mito de criação desses povos, diz respeito ao fato de que a mulher, “La'ila'i”, irmã mais velha de deus e do homem e disputada
por ambos, era a herdeira legítima da criação, capaz de transformar a vida
divina em vida humana. Tal explicação mítica lança luz sobre o fato histórico
anteriormente mencionado, sobre as mulheres havaianas que se diziam geradoras
de filhos dos deuses (o deus Lono, diga-se de passagem, nascia anualmente da
conjunção/união entre o deus e as mulheres do povo). Assim como faz lembrar a
atitude da esposa do rei Kalaniopu'u, quando interviu para que ele não
acompanhasse Cook. Sua atitude, conforme atentou Sahlins, faz retornar a tríade
– deus, homens e mulher, saindo em vantagem o posicionamento da mulher.
Ainda, conforme o antropólogo, só
conhecendo o pensamento polinésio, marcado por essa relação entre deus e o
homem/mulher, bem como a prática do canibalismo e endocanibalismo, pode-se
verificar o porquê desses povos preferirem “arrancar sua existência dos deuses
sob o signo e a proteção de um adversário divino” (1999, p.148).
Quando James Cook, conforme relato de
Samwel, chegou à ilha durante a estação do Makahiki, as jovens havaianas
passavam a maior parte de seu tempo cantando e dançando – no plano simbólico “a
dança despertaria o deus: um tipo de cópula cósmica entre mulheres mortais e o
progenitor divino” (1999, p.152). Dessa maneira, sua morte, para os havaianos,
assim como a morte do deus Lono, teria o papel de frutificar a terra, torná-la
próspera e fértil.
Portanto, como se vê, é perceptível ao
longo da narrativa o entrelaçamento do tempo mítico (simbólico) e do tempo
histórico (racional), sendo tais tempos paralelos na busca do sentido da
existência/identidade humana. Os povos polinésios utilizaram seus repertórios
míticos para interpretar a nova realidade dando-lhe, por sua vez, significação.
Neste aspecto, a obra Ilhas da História apresenta
possibilidades para a História Cultural trabalhar com processos de construção e
significação do tempo no que tange às realidades sociais das civilizações que
serão seu objeto de estudo, afastando-se de análises embasadas nas concepções
hegelianas e marxistas.
Ademais, caberiam outras observações,
tendo em vista as críticas e equívocos apontados por autores como Ganananath
Obeyeysekere (1992), que pôs em dúvida a narrativa antropológica de Marshall
Sahlins. Ao discordar, por exemplo, que James Cook ainda em vida tenha sido
visto como um deus local, afirmação esta que alteraria consideravelmente os
sentidos dos acontecimentos relatados por Sahlins. No entanto, essa discussão
fugiria do propósito inicial deste texto, que teve o propósito de refletir,
ainda que parcialmente, sobre as noções de estrutura e história na busca por
entender as relações entres os homens e a criação de seus deuses, o que
ocasiona um diálogo sincrônico e diacrônico sobre o tempo mítico e o tempo
histórico.
REFERÊNCIAS
Lidiana
Emidio Justo da Costa é professora de Ensino Médio da Escola Cenecista João
Régis Amorim; Graduada em História pela Universidade Estadual da Paraíba;
Especialista em História do Brasil (Cintep-PB); Mestra em História pela
Universidade Federal da Paraíba e atualmente doutoranda vinculada ao Programa
de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação do
professor Dr. José Bento Rosa da Silva. E-mail: leejusto@hotmail.com.
HARTOG,
François. Ordens do tempo, regimes de
historicidade. In: HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo
e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
KUPER,
Adam. Cultura - a visão dos antropólogos. Tradução de Mirtes Frang de Oliveira Pinheiros, Edusc, 2002, p.
211.
OBEYESEKERE, Gananath. “Capitain Cook and the European
imagination”. In: ______. The Apotheosis
of Captain Cook: European mythmaking
in the Pacific. New Jersey: Princeton
University Press, 1992.
SAHLINS, Marshall. Ilhas
de História. Rio de Janeiro, 1990. Cap. 4 “Capitão
James Cook ou o Deus agonizante”. p. 140-171.
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Lidiana, primeiramente parabéns pelo trabalho! Está realmente muito bom, muito interessante!
ResponderExcluirUm questionamento sobre aspectos mais teóricos, você saberia dizer os principais cuidados que o historiador que se interessa em pesquisas no campo da história das religiões, deve ter no trato do tempo mítico e do tempo histórico?
Obrigado desde já.
Edimar Junior.
Muito interessante a leitura, principalmente a forma que se traz a tona a leitura da interpretação do SAHLINS.
ResponderExcluirA relação desse Tempo Mítico e do Tempo Histórico, realmente possui uma intrigante linha muito fina que só pode ser entendida através dos olhos daqueles que estão envolvidos no olhar mítico, porém é preciso relacionar a perspectiva desses indivíduos sobre sua relação com que para eles é mítico, divino e o que se pode inferir como realidade. Trazendo aqui alguns dos argumentos de Paul Veyne, parece interessante entender que toda essa interação não precisa ter uma realidade "racional", mas que as duas linhas convergem entre si. Lidiana, voce acredita que é possível fazer um trabalho de História levando em conta os apectos relativos a base cultural e mítica de uma sociedade para construir a partir daí a história desses sujeitos?
GUSTAVO GOMES DE MEDEIROS
Caro Edimar Júnior e Gustavo Gomes Medeiros, agradeço imensamente a leitura do texto, fico muito feliz que tenham apreciado.
ResponderExcluirRespondendo à pergunta de vocês, penso que são vários os cuidados que um historiador deve ter ao realizar uma pesquisa que envolva uma discussão a respeito do “Tempo Mítico” e “Tempo Histórico”.
Mas, três, são fundamentais para o início de uma pesquisa: O primeiro é compreender que a linguagem da História é racional/conceitual, enquanto que a linguagem mítica é permeada de simbolismos; Segundo, entender que, apesar de apresentarem linguagens diferentes, o “Tempo Mítico” e o “Tempo Histórico” se entrecruzam em um tempo do sentido, terceiro e último ponto, de um modo generalista, o “Tempo Mítico” costuma apresentar-se de modo cíclico, sendo assim, ele se repete, e essa repetição ocorre através dos ritos de origens.
Portanto, com base nesse entendimento, compreendo ser possível, Gustavo Gomes Medeiros, fazer uma pesquisa no campo da História onde haja uma articulação entre os tempos, na tessitura das histórias dos sujeitos. Principalmente quando compreendemos que a narrativa mítica pode colaborar no processo de reflexão sobre a complexidade da existência humana em sua busca por identidade.
Bom evento para vcs,
Lidiana Emidio Justo da Costa