UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE O TRATAMENTO MENTAL NO BRASIL DO SÉCULO XX A PARTIR DA OBRA “HOSPÍCIO É DEUS – DIÁRIO I” DE MAURA LOPES CANÇADO
Edivaldo Rafael de Souza

Esta comunicação ampara-se no livro Hospício é Deus – diário I, da escritora mineira Maura Lopes Cançado, para fazer uma breve análise de como era o tratamento mental no Brasil durante o século XX. Considerando esse ponto, o principal objetivo é, portanto, discorrer sobre e compreender como os pacientes eram atendidos em hospitais psiquiátricos da cidade do Rio de Janeiro durante o período supracitado. A principal justificativa para este estudo é a obtenção de um maior conhecimento sobre a escritora em questão, bem como a discussão dos mecanismos de tratamento direcionados aos doentes mentais, este que é um importante tema permeado na sociedade brasileira.

Para a análise nessa comunicação, além do livro da escritora em foco, lançou-se mão também de obras que discorrem sobre as instituições para doentes mentais no Brasil.

 Maura Lopes Cançado é natural de São Gonçalo do Abaeté-MG. Ainda na infância, a família descobriu que ela possuía problemas mentais. Entretanto, foi na adolescência que ela se internou pela primeira vez em uma clínica para doentes mentais, em Belo Horizonte. Posteriormente, ela se muda para o Rio de Janeiro, onde passa a frequentar diversos hospícios. Dentro deles, escreveu um diário intitulado “Hospício é Deus – diário I”, no qual rememora a sua infância e adolescência e faz relatos sobre o tratamento recebido por ela e pelas outras pacientes nas instituições pelas quais passou.

A primeira vez em que se discutiu sobre a construção de um local que abrigasse os doentes mentais no Brasil foi durante o Brasil Império Segundo Machado (1978, p. 428), através do “[...] decreto de 18 de julho de 1841, criando o Hospício de Pedro II [...]” (MACHADO, 1978, p. 428). Em 1852, foi inaugurado o primeiro local destinado a pacientes mentais, chamados naquela época de “loucos” ou “alienados”. De acordo com Sêrro (2006, p. 16) esse foi “[...] o marco institucional da assistência psiquiátrica no Brasil, exatamente por ter sido o momento histórico em que se inaugurava o primeiro espaço especificamente destinado aos loucos”. Posteriormente surgiriam diversas outras instituições, principalmente durante o período inicial da Primeira República.

Em relação às etapas as quais eram levadas uma pessoa a se ingressar em um hospício, pode-se levar em consideração que não era somente quem sofria com doenças mentais que ia parar lá dentro. Nessa época, a sociedade tentava retirar do convívio dos demais aqueles que eram tidos como pessoas indesejáveis: alcoólatras, usuários de drogas, órfãos, “mães solteiras”, enfim... Havia uma série de fatores que poderiam contribuir para que uma pessoa fosse parar em um hospício. A exemplo disso, segundo Arbex (2017, p. 25) no hospital Colônia em Barbacena – MG, “(...) a estimativa é que 70% dos atendidos não sofressem de doença mental. Apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública”.

No livro Hospício é Deus – diário I, Maura começa descrevendo o hospício como uma cidade triste, onde pessoas eram retiradas de sua identidade, seja visual, seja comportamental. Todas as internas utilizavam a mesma vestimenta com uma numeração para que ficasse mais fácil a identificação e a contagem das internas. Considerando isso

“(...) o hospital é visto como o grande responsável pelo estado de degradação em que os internos se encontram: em função do isolamento e privações que impõe a seus abrigados, ele dilui suas identidades e os ‘cronifica’ como doentes” (LOUGON, 2006, p. 108).

 Cançado (1979, p. 33) descreve que a instituição em que estava internada “se compõe de seis edifícios, abrigando, normalmente, creio, dois mil e quinhentos habitantes (não estou bem certa do número)”. É importante notar que tais locais de internações, comumente, possuíam um grande número de pessoas. Visto que, como já foi dito aqui nesse texto o espaço era utilizado para o “tratamento” de vários tipos de pacientes.

Ela denuncia que os médicos quase não compareciam ao local, deixando quase tudo a cargo das enfermeiras e também dos outros funcionários. Em uma passagem Maura conta que “Os médicos são de uma incoerência escandalosa; por mais que queiram negar, estão de acordo com os ‘castigos’, aprovam-nos ou mandam até mesmo aplicá-los (CANÇADO, 1979, p. 85). Entrementes,

“[o] paradigma psiquiátrico clássico transforma loucura em doença e produz uma demanda social por tratamento e assistência, distanciando o louco do espaço social e transformando a loucura em objeto do qual o sujeito precisa distanciar-se para produzir saber e discurso” (AMARANTE, 1995, p. 46).

Dessa forma, durante o século XX no Brasil, havia várias instituições que mantinham os doentes mentais longe da realidade além dos muros e do convívio social.

Em sua narrativa, Maura também dá voz a pessoas que estavam ali esquecidas por tudo e por todos, sempre discorrendo sobre outras pacientes e o que acontecia com elas dentro do hospício, em um trecho de seu livro, Maura fala de Durvaldina.

“Durvaldina tem um olho roxo. Está toda contundida. Não sei como alguém não toma providência para que as doentes não sejam de tal maneira brutalizadas. Ainda mais que Durvaldina se acha completamente inconsciente. Hoje fui ao quarto-forte vê-la. (...) Durvaldina abraçou-me chorando, pediu-me que a tirasse de lá. O quarto é abafadíssimo e sujo. Fiquei mortificada, perguntei-lhe se sabia quem lhe batera, e ela: ‘- Não. Alguém me bateu?’.” (CANÇADO, 1979, p. 127).

Em relação aos tratamentos oferecidos, Maura discorre sobre vários procedimentos que eram utilizados, dentre eles a eletroconvulsoterapia, com o uso do temido eletrochoque. Em determinado episódio a autora relata:

Fiquei na sala de eletrochoques ajudando dr. A. Enquanto a enfermeira carregava as doentes para o dormitório, nós dois mudávamos as posições das camas, trazíamos a cama vazia para perto do aparelho, empurrávamos a outra, onde a doente se achava inconsciente (CANÇADO, 1979, p. 184).

A alimentação dentro dessas instituições era de péssima qualidade, além disso, geralmente, faltava higiene nos locais de preparo e distribuição. Maura ao escrever sobre isso revela detalhes.

“(...) à hora do almoço o refeitório vibra, frenético e nauseante. Uma, rasgada, dança com o prato na cabeça. Outra come ávida, mastigando de boca aberta, a gordura escorrendo-lhe pelo queixo. Falam, cantam, brigam, riem” (CANÇADO, 1979, p. 78).

Maura Lopes Cançado encerra o livro com uma frase em que desabafa sobre tudo aquilo que estava enfrentando. “Como é desolador perder a fé nas pessoas a quem amamos. Como é terrível ficar sozinha. E como é desgraçado estar na situação em que estou” (CANÇADO, 1979, p. 201).

Diante da exposição constada neste estudo, é possível concluir que o tratamento mental brasileiro durante o século XX muitas das vezes era cerceado em torno de práticas abusivas e autoritárias em relação aos pacientes, uma vez que esses eram constantemente agredidos, seja de forma física, seja de forma psicológica, simplesmente porque estavam internados em hospícios. Alguns, inclusive, não possuíam nenhum problema mental. Os “tratamentos” oferecidos também eram arcaicos e deixavam marcas que seriam levadas por toda vivência dos(as) pacientes. Com o passar dos anos até a atualidade, os tratamentos foram sendo modificados. Em 2001 foi instituída no Brasil a Lei Nº 10.216, 6 de abril de 2001, lei esta de suma importância, também conhecida como lei antimanicomial. Todavia, é de comum acordo que são necessárias cada vez mais novas e eficazes políticas públicas que possam assistir não só os doentes mentais, mas também os seus familiares, garantindo a ambos os seus direitos enquanto cidadãos e a sua dignidade enquanto indivíduos.

REFERÊNCIAS:

Graduado em História pelo Centro Universitário de Patos de Minas – UNIPAM. E-mail: edivaldorafael007@gmail.com

AMARANTE, Paulo. (coord.) Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1995.
ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro. 4. ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus: diário I. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 1979.
_____. O sofredor do ver. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
LOUGON, Maurício. Psiquiatria institucional: do hospício à reforma psiquiátrica. 20. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. (Coleção Loucura e Civilização).
MACHADO, Roberto. et al. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
SÊRRO, Raquel Brandão do. Maura Lopes Cançado: lúcida, lírica e louca. 2006. 44p. Monografia de Graduação em Letras, Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM), Patos de Minas – MG, 2006.
Lei Nº 10.216, 6 de abril de 2001: Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.  Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em: 28 nov. 2018.

9 comentários:

  1. Boa noite, Edivaldo. Seu texto traça uma análise fundamental para os estudos sobre os espaços institucionais para pessoas portadoras de transtornos mentais, assim através das vivências e experiências da Maura Lopes Cançado podemos observar a construção de um espaço de corpos dóceis e conscientes de si. Parabéns pelo texto.

    ResponderExcluir
  2. Exatamente, José Humberto Rodrigues. Maura Lopes Cançado esteve internada em diversos hospitais psiquiátricos durante as décadas de 1950/1960. Dessa forma, o seu livro é um testemunho de como era o "tratamento mental" realizado no Brasil.

    Atenciosamente,
    Edivaldo Rafael de Souza.

    ResponderExcluir
  3. Edivaldo, primeiramente parabéns pelo trabalho, tal temática é extremamente interessante!
    Você citou o grande número de pessoas que acabavam indo para esses locais sem possuir algum tipo de doença mental. Podemos dizer que este período, ou durante grande parte do século XX, essas instituições serviam como um instrumento das autoridades para tirar de circulação aqueles indivíduos considerados "indesejados". Agradeceriam se discorresse um pouco mais sobre isso.

    Desde já agradeço. Edimar Junior

    ResponderExcluir
  4. Exatamente Edimar. Nesse período, o hospício além de ser um local para o chamado "tratamento mental", também era um espaço destinado a pessoas que na percepção dos ditos "normais" não se enquadravam naquilo que a sociedade aceitava. Ou seja, usuário de drogas, "mães solteira", órfãos, moradores de rua, enfim, infelizmente, várias pessoas se ingressava nos hospícios de diferentes maneiras. No Brasil após a reforma psiquiátrica, essas instituições acabaram fechando ou se modernizando. Nesse sentido, surgiram os Naps e os Caps que prestam apoio a pacientes e familiares; porém ainda há muito a ser feito. É preciso cada vez mais políticas públicas que funcionem para essas pessoas, pois merecem todo respeito e toda assistência por parte da sociedade.

    Além do livro Hospício é Deus de Maura Lopes Cançado, eu também indico para leitura: Canto dos Malditos de Austregésilo Caetano Bueno; Diário do Hospício de Lima Barreto e Holocausto brasileiro de Daniela Arbex.

    Atenciosamente,
    Edivaldo Rafael de Souza.

    ResponderExcluir
  5. Olá, Edivaldo, antes de mais nada, parabéns pelo texto e pela pesquisa. Seu tema nos ajuda a entender um pouco mais sobre o tratamento mental no Brasil e, sobretudo, sobre a construção de um discurso sobre o doente mental. O que me chamou mais a atenção foi a sua fonte que se baseia no relato da própria interna. Essa abordagem enriquece ainda mais o trabalho, no sentido de ser a voz daquele que é classificado como “louco”. Como contribuição à sua pesquisa, eu te recomendo a leitura de um texto da Marilena Chauí intitulado “Travessia do Inferno” que está no livro “Sobre a Violência”. É um artigo curto que foi originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em 1984. O texto faz uma reflexão sobre as condições desumanas do Hospital Psiquiátrico do Juquery em São Paulo. Além da descrição da autora, ela transcreve muitos relatos das internas (a análise é sobre uma ala exclusivamente destinada às mulheres). Acho que pode abastecer o seu debate. No mais, parabéns mais uma vez pela pesquisa!
    Atenciosamente,
    José Rodrigo de Araújo Silva

    ResponderExcluir
  6. Obrigado, Rodrigo Araújo. Realmente a loucura é uma construção histórica, que surgiu na antiguidade. Desde sempre o chamado louco é visto com negatividade. Por isso, os doentes mentais sofrem muito preconceito, ainda na atualidade. Nesse sentido, creio que estudos sobre escritores(as), pintores, enfim, artistas que possuem ou possuíam algum distúrbio mental possa contribuir para desmistificar que essas pessoas não podem conviver com os demais em sociedade. Ressalta-se que o tratamento utilizado melhorou muito, porém ainda tem muito a ser feito, por parte das autoridades políticas e pela sociedade em geral. Principalmente no apoio aos familiares. Em relação ao Juquery em Franco da Rocha, creio que foi um dos maiores hospícios do Brasil, contando com diversas alas e prédios, uma cidade realmente, como a Maura Lopes Cançado chama, " uma cidade triste, de jaleco azuis". Nesse sentido, um ex paciente e funcionário do Juquery escreveu um livro a alguns anos atrás, o nome é "o capa branca". Ademais, obrigado pela referência e indicação do texto da Chauí, com certeza vou ler.

    Atenciosamente,

    Edivaldo Rafael de Souza.

    ResponderExcluir